Por: Roberto DaMatta
Que o leitor me desculpe a
autorreferência, mas para quem caracterizou o sistema brasileiro como
dependente de uma dimensão hierárquica (a realidade do mais ou menos) que
obriga em saber quem manda ou quem é dono — o famoso, mas pouco avaliado, “Você
sabe com quem está falando?” — o mal-estar que nos assola tem tudo a ver com
uma ausência de limites relacionada a uma forte presença da igualdade e a
ausência significativa, típica do lulopetismo, de alguém capaz de ancorar
responsavelmente a cena política.
A velha oposição entre direita e esquerda
que sempre ajudou a montar a nossa cosmopolítica dividindo o mundo entre mal e
bem, burgueses vendidos e nós, esboroou-se com as manifestações que trouxeram
ao palco uma multidão de reivindicações, a maioria pedindo o final de dois
pesos e medidas, de uma ética de condescendência típica das posições lulistas e
messiânicas.
Fincadas na liberdade e exigindo
igualdade, as passeatas inauguraram um escandaloso “ninguém sabe com quem está
falando!” Deste modo, o mandamento central da nossa cartilha política sumiu
depois das reações da presidente, cujo resultado criou novos confrontos.
Mas o clímax desta ausência de limites foi
a entrevista à “Folha de S.Paulo”, na qual se lê que Dilma e Lula são
“indissociáveis”. Formam, como eu insinuei nesta coluna faz tempo, um perfeito
ato de ventriloquia. Agora ninguém sabe mais se está falando com o ventríloquo
ou com o boneco.
As passeatas testam de modo intenso onde
estão os limites. Elas também desnudam a falta de interlocução entre as forças
sociais que o próprio exercício da democracia liberal libertou entre nós.
Nas repúblicas, tal papel cabe ao Poder
Executivo. Um poder solitário, próprio de um personagem capaz de eliminar as
arestas do impessoalismo da dimensão liberal, fundada no consentimento e na
difícil ética de dizer não aos nossos desejos e interesses.
Como entender o nosso pobre, querido,
passivo e abandonado “povo” quando ele deixa de ser a parte passiva de
discursos populistas controlados por um partido, e passa a ser um protagonista
livre a clamar não por uma revolução, mas por um estilo de governar mais
sincero, mais honesto e menos mentiroso?
Mais próximo das necessidades pagas pelo
trabalho desse povo, o que faz das passeatas também uma cobrança. Uma exigência
de reciprocidade depois de uma década e pouco de megapublicidade despudorada e
promessas não cumpridas?
A explicação de que tudo foi obra de redes
eletrônicas é importante, mas não se pode esquecer que nenhum computador opera
sem ter sido ligado. Para que as redes influenciem, é preciso fazer parte de
uma teia. De uma rede que valorizamos e seja capaz de ordenar para nós.
O fato novo é o elo entre individualismo,
transparência e igualdade em tempo real e global. É a vida num universo
translúcido no qual a comparação é um dado essencial e que, por isso mesmo, não
pode conviver com a opacidade de um sistema de governo desenhado para manter os
labirintos sombrios dos que se tornam aristocratas (e milionários!) pela política.
É preciso liquidar a distância entre o
ético e o legal onde nascem as oligarquias e os privilégios que sempre foram o
apanágio do poder à brasileira. São eles que separam o abismo entre o circo
futebolístico “padrão Fifa” do pão amargo de um transporte, de uma saúde, de
uma educação e de uma segurança abaixo de todos nós — as pessoas comuns.
Vivemos hoje a rejeição de um mundo
ideológico tão a gosto de um desonesto receituário político. Esquerda e direita
escondem quem manda mais e quem manda menos; quem é realmente responsável pela
torrente de escândalos que a mídia e as redes não podem abafar.
Do fundo da megalópole dita sem alma,
surge um povo livre de partidos. Sobretudo do partido do poder. O povo,
curiosamente individualizado na passeata, aponta a dissonância: há um padrão
internacional para o futebol, mas não há um padrão decente para a moralidade
pública.
O resultado é uma perturbação histórica.
No país do “Você sabe com quem está falando?”; na terra dos barões, dos
populistas e dos que sabem tudo, não temos mais com quem falar. Há uma busca,
mas a presidente ouve e não escuta. Ela gerencia: decreta e discursa. E quando
o faz, cria outras passeatas e abre a coletividade para novos problemas.
Um lado meu teme pela ausência de atores
mais conscientes dos seus papéis; um outro, otimista, acha que começamos a
descobrir que democracia tem a ver com uma anarquia controlada. Um sistema onde
cada qual sabe do mais difícil: a grande arte de dizer não a si mesmo.
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Roberto DaMatta é antropólogo.
Muito bom,apropriado para o que se ver no momento na política brasileira...
ResponderExcluirDarlan Caldas.