Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo - Edição de 2 de agosto 2012
Por: Demétrio Magnoli
"O
mais atrevido e escandaloso esquema de corrupção e de desvio de dinheiro
público flagrado no Brasil", segundo a definição do procurador-geral da
República, Roberto Gurgel, no seu memorial conclusivo, começa a ser julgado
hoje pelo STF. A palavra "história" está um tanto desgastada. Quase
tudo, de casamentos de celebridades a jogos de futebol, é rotineiramente declarado
"histórico". O adjetivo, contudo, deve ser acoplado ao julgamento do
mensalão - e num duplo sentido. A Corte Suprema está julgando os perpetradores
de uma tentativa de supressão da independência do Congresso Nacional e, ao
mesmo tempo, dará um veredicto sobre um tipo especial de corrupção, que almeja
a legitimidade pela invocação da História (com H maiúsculo).
Silvio
Pereira, o "Silvinho Land Rover", então secretário-geral do PT,
tornou-se uma figura icônica do mensalão, pois, ao receber o veículo, conferiu
ao episódio uma simplória inteligibilidade: corruptos geralmente obtêm acesso a
"bens de prazer" e a "bens de prestígio" em troca de sua
contribuição para os esquemas criminosos. No caso, porém, o ícone mais confunde
do que esclarece. "Vivo há 28 anos na mesma casa em São Paulo, me hospedo
no mesmo hotel simples há mais de 20 anos em Brasília, cidade onde trabalho de
segunda a sexta", disse em sua defesa José Genoino, então presidente do PT
e avalista dos supostos empréstimos multimilionários tomados pelo partido.
Foto: Veja.com |
José
Dirceu, o "chefe da quadrilha", opera atualmente como lobista de
grandes interesses empresariais, não compartilha o estilo de vida monástico de
Genoino, mas também não parece ter auferido vantagens pecuniárias diretas no
episódio em julgamento. O então poderoso chefe da Casa Civil comandou o esquema
de aquisição em massa de parlamentares com o propósito de assegurar a navegação
de Lula nas águas incertas de um Congresso sem maioria governista estável. Dirceu
conduziu a perigosa aventura em nome dos interesses gerais do lulismo - e,
imbuído de um característico sentido de missão histórica, aceitou o papel de
bode expiatório inscrito na narrativa oficial da inocência do próprio
presidente. Há um traço de tragédia em tudo isso: o mensalão surgiu como
"necessidade" apenas porque o neófito Lula rejeitou a receita
política original formulada por Dirceu, que insistira em construir extensa base
governista sustentada sobre uma aliança preferencial entre PT e PMDB.
A
corrupção tradicional envenena lentamente a democracia, impregnando as
instituições públicas com as marcas dos interesses privados. O caráter
histórico do episódio em julgamento deriva de sua natureza distinta: o mensalão
perseguia a virtual eliminação do sistema de contrapesos da democracia, pelo
completo emasculamento do Congresso. A apropriação privada fragmentária de
recursos públicos, por mais desoladora que seja, não se compara à fabricação
pecuniária de uma maioria parlamentar por meio do assalto sistemático ao
dinheiro do povo. Os juízes do STF não estão julgando um caso comum, mas um
estratagema golpista devotado a esvaziar de conteúdo substantivo a democracia
brasileira.
No
PT, "Silvinho Land Rover" será, para sempre, um "anjo
caído", mas o tesoureiro Delúbio Soares foi festivamente recebido de
volta, enquanto Genoino frequenta reuniões da direção e Dirceu é aclamado quase
como mártir. O contraste funciona como súmula da interpretação do partido sobre
o mensalão. Ao contrário do dirigente flagrado em prática de corrupção
tradicional, os demais serviam a um desígnio político maior - um fim utópico ao
qual todos os meios se devem subordinar. São, portanto, "heróis do povo
brasileiro", expressão regularmente usada nas ovações da militância
petista a Dirceu.
O
PT renunciou faz tempo à utopia socialista. Na visão do "chefe da
quadrilha", predominante no seu partido, o PT é a ferramenta de uma utopia
substituta: o desenvolvimento de um capitalismo nacional autônomo. Segundo tal
concepção, o lulismo figuraria como retomada de um projeto deflagrado por
Getúlio Vargas e interrompido por FHC. Nas condições postas pela globalização,
tal projeto dependeria da mobilização massiva de recursos estatais para o
financiamento de empresas brasileiras capazes de competir nos mercados
internacionais. A constituição de uma nova elite política, estruturada em torno
do PT, seria componente necessário na edificação do capitalismo de Estado
brasileiro. Sobre o pano de fundo do projeto de resgate nacional, o mensalão
não passaria de um expediente de percurso: o atalho circunstancial tomado pelas
forças do progresso fustigadas numa encruzilhada crucial.
A
democracia é um regime essencialmente antiutópico, pois seu alicerce filosófico
se encontra no princípio do pluralismo político: a ideia de que nenhum partido
tem a propriedade da verdade histórica. Na democracia as leis valem para todos
- mesmo para aqueles que, imbuídos de visões, reclamam uma aliança preferencial
com o futuro. O "herói do povo brasileiro" não passa, aos olhos da
lei, do "chefe da quadrilha" consagrada à anulação da independência
do Congresso. Ao julgar o mensalão, o STF está decidindo, no fim das contas,
sobre a pretensão de uma corrente política de subordinar a lei à História - ou
seja, a um projeto ideológico. Há, de fato, algo de histórico no drama que
começa hoje.
___________________________________________
Demétrio Magnoli - é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP. Demetrio.magnoli@uol.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado pelo seu comentário, fique à vontade para criticar e sugerior. Denúncias podem ser enviadas para louremar@bol.com.br ou louremar@msn.com